domingo, 27 de setembro de 2020

Tieta do Agreste (1996)


Li "Tieta" há pouco tempo, depois que meu pai desencavou um exemplar em busca de algum sossego antes de dormir. À medida em que avançava na leitura, no entanto - para além de me perguntar por que diabos chegara aos vinte e seis anos tendo lido de Jorge Amado apenas "Capitães de Areia" para o vestibular - não conseguia definir bem como uma obra que orbita ao redor de um incesto poderia ser "uma novelinha leve", nas palavras de meu insone pai. Não que discordasse dele! Pelo contrário, uma viagem a Santana do Agreste era realmente o melhor antídoto para o jornal nacional de dois mil e vinte. A questão é que, ao mesmo tempo, aquilo que eu lia não era uma novelinha - pelo menos não no sentido em que estamos acostumados a entender novela (leia-se das sete, oito ou nove). Para falar mais rebuscado, pelo bem da precisão, o que não entendia era como o cara conseguia tratar temas tão espinhosos (porque o incesto é só mais um deles) com nuance e complexidade numa narrativa que nunca perdia a leveza e o bom-humor. Bom, talvez porque "o cara" seja um dos maiores escritores deste país.

É por esta razão que enquanto assistia à adaptação de Cacá Diegues - que o tabaréu que aqui vos escreve também nunca tinha visto - uma frase de efeito apareceu toda pomposa em minha cabeça: "Ah, se o cinema tivesse que pagar por cada crime já cometido contra a literatura...". Nos últimos tempos a esta extensão máxima vinham se resumindo meus comentários sobre cinema - e volta e meia já martelava a obrigação moral para com meu ofício de tentar elaborar melhor estes juízos estéticos. Mas se com os últimos lançamentos da netifliques uma dose de desconfiança inicial e sarcasmo é quase que obrigação de quem tem amor à arte, com "Tieta" era fratricídio. Era hora de criar este bendito blogue...

Começemos pelo que interessa então: não gostei do filme. Sendo o estudo das artes uma longa e penosa humilhação do próprio sentido do gosto, quando a gente sai da faculdade fica um pouco rebelde, saibam desculpar. Feito o mea culpa, no entanto, completo dizendo que a impressão que tinha por momentos era de estar vendo uma longa "cena de samba": aquele momento em que o roteirista da novela já encheu o saco de intriga e escreve cinco páginas para mostrar como a vida no subúrbio é divertida e peculiar. E a menção repetitiva à TV aqui é nariz empinado de bacharel em cinema mesmo. Por mais que esteja fora de moda, é bom lembrar que a teledramaturgia é e sempre será inferior a Jorge Amado em nível de sofisticação artística. E tudo bem! Às vezes o que o cidadão quer é uma janela aberta para a casa dos outros enquanto toma café... O problema é quando a cinematografia narrativa de um país inteiro se vê refém de um modelo de produção que não lhe corresponde.

Se tem algo no "padrão globo de qualidade" que me incomoda profundamente é a mania de pensar o Brasil desde a zona sul do Rio de Janeiro - e nos últimos anos o esforço de fazer novelas ambientadas em outras regiões só faz mais evidente essa característica de nossa formadora audiovisual. É certo que tenho uma obsessão pessoal pela questão da regionalidade, mas não deixa de ser interessante perguntar por que na adaptação até o personagem de Peto, sobrinho mais novo de Tieta, tinha que ser interpretado por um carioca. Para atrair público é que não era, já que o menino não era famoso e deve ter tido três linhas de diálogo no filme inteiro. E se o rosto bonito de Leon Goes - o aspirante a prefeito Ascânio Trindade - tinha cacife para dar bilheteria na época eu desconheço, mas com uma performance digna de peça de escola como aquela... Na verdade no elenco inteiro as únicas atuações realmente inspiradas são as de Chico Anysio e Marília Pera - ainda assim boicotadas pelo roteiro fraco. Cláudia Abreu é adequada, Zezé Motta não tem chance de fazer muito, Heitor Martinez Mello é óbvio. Quanto a Sônia Braga, não sei o que tanta gente vê nela.

Mas não é só uma questão de quem tem o sotaque certo - ou da falta de empenho na preparação dos sudestinos famosos. O buraco é mais embaixo. A questão aqui é a falta de compreensão de um contexto cultural que faz com que seja quase inevitável cair em clichês. E talvez até um pouco mais. A percepção de que a força de Jorge Amado é tanta que a baianidade que ele ajudou a construir através de suas obras já é por si só um grande clichê a serviço do turismo nosso de cada dia. Representar Jorge Amado hoje também significa, portanto, o desafio de ir além da "terra da felicidade". E nesse sentido acho interessantíssimo o fato de a trilha sonora de Caetano Veloso sobrar em todos os momentos em que aparece. Não me entenda mal! Acho que "A Luz de Tieta" poderia muito bem substituir o hino nacional deste país. É que, digamos que sendo o cinema uma mistureba de tantas artes, o único jeito de ficar bom é que uma diga uma coisa ligeiramente diferente da outra. E Caetano traduz Jorge Amado (a Bahia, o Brasil) bem demais. Uma espécie de comprovação prática da equiparação de dois gênios construtores de um texto cultural. Sobrepostos, apenas se reiteram.

Passemos agora ao roteiro, onde creio estar a falha central da adaptação, com mais uma frase de efeito que poderia sintetizar meu argumento em um tweet: Tieta nunca se envergonha de ser puta. Pelo contrário, ela é "a puta que estava eticamente acima dos que lhe desprezavam moralmente", como escreveu Jean Willys num comentário lúcido sobre a obra (ao menos até ele começar a comparar Tieta a Lula). A filha pródiga não volta para sua terra natal, de onde saiu humilhada, para se vingar ou "se mostrar como rainha" como fazem Sônia Braga dizer em algum momento. Muito menos sai de lá de cabeça baixa. A beleza da construção de personagem está exatamente em entendermos como pode alguém tão profundamente ferido se compadecer da miséria de seus algozes e fazer-lhes o bem de coração. Tieta não precisa dizer que a família só está atrás de seu dinheiro porque sabe disso e (na maior parte do tempo) o fato em nada muda o gosto que tem por dar, aprendido com seu amado Felipe. Sem estas camadas a Tieta de Cacá Diegues perde grande parte da altivez que faz da Tieta de Jorge Amado um dos maiores símbolos de força feminina em nossa literatura.

Se a protagonista tem alguns traços de complexidade apagados, seu sobrinho e par romântico proibido então vira uma mera caricatura. Sem acompanhar o drama interno de Ricardo, que passa pelo inferno até encontrar uma nova forma de crer em Deus, ficamos simplesmente com um menino desvirtuado pela tia. Ao não entender como o garoto, sempre temente à igreja, encontra uma forma de fé expandida - onde há lugar para o mundo, o sexo, o novo - perdemos a beleza de uma argumentação que aponta contra o nosso próprio juízo moral. Para além disto, o enfoque na trama folhetinesca, deixando de lado os pormenores do embate contra a instalação da fábrica de dióxido de titânio terminam por relegar a Ricardo um lugar de personagem acessório, tirando dele o protagonismo naquele embate social que sua mudança interna possibilita. E aqui é interessante observar que também Tieta termina diminuída ao não ter que abandonar a paz e o sossego de seu romance proibido e partir para a ação política por pedido de Ricardo. Ficamos assim sem seu real retorno às raízes, já que é apenas com esse ponto de virada final que a madame paulistana volta a ser pastora de cabras intempestiva, jogando os porta-vozes do progresso vazio aos tubarões. Assim, Ricardo não chega a devolver-lhe a juventude.

Por último, observemos que enquanto ao mesmo tempo que romance incestuoso de nossos protagonistas perde densidade, a trama de Leonora e Ascânio ganha injustificada importância. Tão grande é a inversão que basicamente a viagem de Tieta deixa de ser uma volta às origens para ser a fuga de Leonora de um ex-namorado traficante - mudança importante na motivação da protagonista simplesmente para justificar a possibilidade de um final feliz para o casal secundário (já que assim está dada a possibilidade de que ela termine ficando em Agreste). E não é só Tieta que sai prejudicada com a mudança. Sem um desenvolvimento da trama política maior que alguns diálogos absolutamente explicativos - entregues, reitero, terrivelmente por Leon Goes - e sem o final trágico do dito progressista que se percebe atado preconceitos provincianos, Ascânio vira um simples mocinho desinteressante. Arrisco dizer aqui que é por não entender que Tieta não sai diminuída quando Agreste a descobre puta que o roteiro vê a necessidade de um final feliz secundário para consolar o espectador e termina modificando desnecessariamente uma estrutura que funcionava perfeitamente bem. Ou vai me dizer que um fim trágico fez Jorge Amado vender menos?

Não chego nem perto de imaginar a magnitude da tarefa de adaptar uma obra tão grande - metaforica e literalmente -, mas creio que em nome de fazer um filme com apelo comercial se terminaram tomando algumas saídas fáceis demais. Sendo eu um admirador e entusiasta do cinema narrativo de qualidade, portanto, tendo a apostar todas as minhas fichas em que o caminho é o oposto. Que uma narrativa bem estruturada e desenvolvida terminará sempre atraindo mais público do que uma obra que cumpre com todos os requisitos para ser um "blockbuster", mas carece de solidez. Aqui terminamos com um filme que se sustenta quase que unicamente na grandeza de Jorge Amado - e não deixa de ser sintomática a escolha de convidá-lo para abrir e fechar a história -, mas que ao mesmo tempo se diz uma "adaptação livre", como que eximindo-se de qualquer possível sacrilégio feito à obra. Termino então retomando aquela frase de efeito lá do início na esperaça de que, depois de tanto falatório, possa soar menos soberba. Sim, o cinema narrativo precisa crescer e fazer-se responsável pelas cagadas que faz com a literatura. Eles têm alguns muitos séculos de história a mais que nós.