quinta-feira, 8 de abril de 2021

"A Febre" ou "Cidade Invisível"?



Sou um espectador preconceituoso a um nível preocupante. Agradeço muito a todos que me fizeram enxergar que a expectativa é sempre injusta com uma obra, concordo em gênero, número e grau, mas infelizmente não posso evitar a enxurrada de deduções que os três primeiros planos de um trailer provocam em meu cérebro reptiliano. A desgraça que me dificulta expiar este pecado, no entanto (além do sol em Touro) é o fato de que numa acachapante maioria das vezes eu estou certo. "Tem só uns dois livros que vale a pena ler; filmes bem menos", disse certa feita uma grande professora de roteiro. E, nestes tempos, quanto mais a pandemia me força a ser o cinéfilo que nunca fui, mais sou levado a pensar que talvez melhor mesmo seja aceitar o desmonte do financiamento à cultura do novo arrocho neoliberal. Ok, isso nos dias em que faz mais de 37 graus. Quando sopra um ventinho de chuva dá até pra sentar e escrever um pouco sobre cinema brasileiro.

É por culpa das trovoadas de algumas semanas atrás então que me meti a dissertar sobre dois lançamentos nacionais na Netflix - e por culpa de sua tão curta duração que o texto vai sair bem fora de timing. Mas ótimo, afinal aqui a gente dá corda pra monopólio midiático, mas também faz nossa desobediência aos ritmos de consumo pós-modernos. E além de tudo o mote não é exatamente comentar as estreias em si (que inclusive já começam a se perder no feed da indústria cinematográfica), mas acho que as duas funcionam bem como abordagens opostas sobre o mesmo tema, o que pode render uma discussão interessante. Bom, a questão é que, com várias pedras na mão, parei para ver "A Febre" e "Cidade Invisível": o primeiro, um filme daqueles meio afrancesados, mas falado em línguas indígenas nativas brasileiras; e o segundo, uma minissérie do nosso diretor popstar de "A Era do Gelo" que tenta fazer hollywood com o folclore nacional - ou ao menos estas eram as minhas absolutas convicções depois de ver as prévias de cada uma das obras.

Comecemos pelo comentário mais fácil: "Cidade Invisível" é uma série rasa pra caramba. Sim, tem efeitos visuais impressionantes, um elenco bastante competente (ah, Alessandra Negrini...) e uma direção que em geral se sai melhor do que as de novela, mas se olhar direitinho está ali sem tirar nem pôr o pecado original que já não sei se tem na Globo sua origem ou apenas seu maior promotor: pensar o Brasil desde a zona sul do Rio de Janeiro (ou da parte descolada de São Paulo, seja lá qual for, dá no mesmo). "Ah, mas uma indústria cultural parte sempre de um centro de poder e serve inclusive como catalisador para a experimentação vanguardista em suas bordas" diriam eles. Pode até ser, mas se é pra fazer docinho de uva, vamos procurar saber onde vende uva sem caroço, queridos. Digo, entre novela das oito e Spielberg tem um caminho bem grande a se percorrer - e, apesar de toda a pirotecnia, Carlos Saldanha neste caso está bem mais pra cá do que pra lá.

Acho que o problema central da minissérie é de conceito, premissa, algo prévio ao roteiro. Digo, o que eles querem que a gente compre é basicamente que o pessoal do Sítio do Pica-pau Amarelo agora mora na Lapa e se envolveu numa trama policial de censura 16 anos. Pois é. Emília e peitinhos. E aí você termina tendo que inventar ocupações tradicionais na floresta metropolitana, ou brancos de classe média que creem em corpo fechado. Em suma, ou o tom é sério demais para a trama, ou a trama é leve demais para o tom. Para tentar deixar o argumento um pouco mais claro, pensemos em contraexemplos:

- Um vilarejo perdido no norte do Mato Grosso. Uma ativista é morta em meio a incêndios e disputas de terra e agora a investigação levará seu marido policial, um poço de pragmatismo, a mergulhar na vida de uma tribo até começar a duvidar se realmente não haveriam divindades da floresta envolvidas no caso. Quantas possibilidades não se abririam para trabalhar de fato a espiritualidade nativa, mostrando inclusive o quanto o folclore pasteuriza entidades de povos completamente distintos? - se o protagonista fosse bolsonarista então, aí que era pano pra manga.

- Ou fiquemos no Rio de Janeiro, mas com uma comédia meio ácida. E aí temos a Cuca (infelizmente já sem o rosto da Alessandra Negrini) tentando esconder o rabo para pegar o metrô, ou o curupira assando queijo coalho na cabeça pra vender na praia. A turma do sítio toda que, depois da destruição da mata atlântica, vive cansada e desiludida nas periferias da cidade até que algo os chamasse de volta para a causa ambiental - irresistível pensar em Ricardo Sales e cia. aqui também, não?

Muito se falou também da ausência absoluta de qualquer indígena no elenco de uma série que aborda "folclore brasileiro", e não saberia dizer se é ato falho ou honestidade essa ausência do selo hoje tão barato da "representatividade". Porque é sempre bom lembrar que mesmo que o protagonista fosse escalado diretamente de uma comunidade tradicional no meio do Amazonas, este ato isolado não seria garantia nenhuma de respeito para com a particularidade desse ou de qualquer outro povo. Fazer de conta que se escuta o outro é facílimo. Abrir espaço para que ele se coloque, com menos ferramentas do que seriam necessárias para que fosse ouvido e realmente compreendido, um pouco menos. Dispor-se a dar essas ferramentas ou usar da própria sensibilidade para entender e traduzir esteticamente a alteridade é que são elas. E com isso, passamos a um comentário um pouco mais arriscado de fazer: "A Febre" é também um filme raso pra caramba.

Digo, é absolutamente fascinante escutar línguas indígenas vivas, perceber como algumas inflexões soam familiares apesar de não entender absolutamente nada, dar de cara com a invasão do português aqui e ali. Lindo inclusive o detalhe de incluir uma cena com uma mulher que fala uma outra língua que nossos protagonistas não conhecem, lembrando muito claramente e sem ter que explicar nada que nós não fazemos ideia do que é o nosso próprio país. Os protagonistas ali não falam o "tupi-guarani" - como poderíamos pensar, buscando referências nas lições do prezinho - mas o tukano, uma entre as quase 300 línguas ainda faladas no Brasil para além do português. O frescor da operação é extremamente efetivo em nos colocar no lugar de "morador da corte". Em macular essa imagem edulcorada que temos do Brasil da felicidade e nos lembrar que para erguer este nosso império, ainda que capenga, tivemos antes que matar muitos Pindoramas. Mas é a única ideia realmente interessante do filme.

Óbvio que também é gratificante ver algo filmado com tanto esmero fora do Sudeste - especialmente porque, ao aparecem as primeiras ruas de Manaus, de repente e com espanto me dei conta de que não levava na cabeça nenhuma imagem da cidade a não ser a do Teatro Amazonas. Mas, confesso, tive que parcelar a sessão em duas vezes para purgar o ranço que me provoca o excesso de solenidade que tenta conferir aos atos mais prosaicos uma profundidade que a narração não está disposta a construir. Tomemos a febre do título, que acomete o protagonista, por exemplo. O que além de "a vida na cidade faz mal ao índio" ela quer dizer? Não tem quase que nenhuma implicação dramática (inclusive simplesmente desaparece em dado momento), não me faz questionar meu lugar de defesa da medicina ocidental através da experiência de uma visão de mundo alternativa (me fazendo crer que realmente um paracetamol pode sugar a alma dele ou algo do gênero), nem tampouco problematiza a tendência politicamente correta de defender o modo de vida tradicional dos povos acima de tudo (e se o cara tivesse um câncer que todo mundo teimasse em só tratar com chá?).

Enfim, neste tipo de filme - que ainda recebe a famigerada etiqueta de "filme de arte" - em geral me parece que o empenho no sentido de evitar o conflito e desconstruir a causalidade da narrativa é tão grande que o "artista" termina simplesmente cansando no meio do caminho. E daí no fim o jeito é filmar tudo bem lento e em planos fixos pra parecer chique. Mas, caro e inexistente leitor, algo que tenho percebido ser uma ferramenta para separar a profundidade da mera preguiça criativa são os diálogos. Sim, porque quando não se tem o vai e vem das ações dramáticas fazendo com que o espectador entenda algo por experiência, o que em geral faz o "artista" não é reinventar a roda - é explicar mesmo. E principalmente quando "ser chique" neste caso também inclui ter poucos diálogos. Aí por um lado você tem o silêncio (e a tensão por ele causada) dando um peso infinitamente maior a cada palavra ao mesmo tempo que precisa enfiar uma página de "psicologia de personagem" em duas linhas. O resultado? Diálogos expositivos, claro. Sou especialmente sensível a estes, confesso. Mas se não achar aqui suficientes exemplos para corroborar minha teoria, veja outra estreia "de arte" nacional recente na mesma plataforma: "Guerra de Algodão".

Respondendo à pergunta título destas linhas, portanto, digo que nem "A Febre" nem "Cidade Invisível" nos devem ser suficientes. Em tempos como estes, quando trabalhadores do audiovisual brasileiro se veem obrigados a celebrar a mera existência de produção nacional, um lembrete de quem ainda está de fora - e, portanto, junto à falta de experiência espera ter ainda algum frescor de olhar: não é por isso que não devemos aspirar a mais. É possível fazer obras que conversem com as massas mantendo frescor e originalidade. Lembram que "O Auto da Compadecida" foi uma minissérie da Globo? É igualmente possível fazer obras autorais dispostas a realmente conversar com alguém. Sabe os documentários do Coutinho? Sou um advogado ferrenho das histórias e de sua capacidade de nos ajudar na árdua tarefa de construir ordens em meio ao caos. E talvez este trabalho nunca tenha sido mais essencial que hoje.

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